Vale do Anhangabaú: multiplicidade do espaço no imaginário

O lugar em que nascemos, onde moramos e as referências das cidades fazem parte da história e compõe nossa identidade. Será que conseguimos decifrar o que esses espaços nos contam? Será que podemos expressar nossa percepção sobre eles? O Vale do Anhangabaú anuncia parte essencial do desenvolvimento de São Paulo e integra o imaginário de quem construiu memórias ali. Esse artigo é um exercício de transcorrer diferentes temas para instigar múltiplas possibilidades, coletivas e individuais, reais e utópicas, de experienciar esse espaço.

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 “Vale-signo”: comunicação do espaço

Os signos contam-nos a história, os processos de desenvolvimento e a cultura que formam nosso repertório. As leituras possíveis de signos construídos, como a composição da cidade, da paisagem, do edifício, do espaço público, ou de qualquer recorte espaço-tempo, tornam complexos seus caminhos de interpretação e entendimento. São objetos de comunicação, signos formados por um conjunto diversificado de características e funções, que exploram a relação entre indivíduos e elementos históricos; ou seja, o valor do signo resulta da importância dada a o que cada um evidencia. Ele é formado pela relação dinâmica entre as pessoas e os elementos históricos de um lugar.

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Viaduto Santa Ifigênia no Vale do Anhangabaú. Fonte: Esdras Passos, 2018

Abordarei o Vale do Anhangabaú como um signo composto por um conjunto heterogêneo, verbal e não verbal – como discursos, instituições, edifícios, leis, ações políticas, proposições filosóficas –, tendo sempre uma função estratégica e concreta com relações de poder. Nesse sentido, o Vale é resultado do cruzamento de relações de poder e de saber, constituindo-se como uma rede no meio em que está inserido.

As leituras ou percepções do Vale dependem da importância que cada um dá a esse objeto. Elas provêm dos sentidos humanos e da sensação que o Vale transmite no encontro. É em torno dele que a cultura de um povo vive, gerando espaços dentro de outros espaços: heterotopias. Foucault (2015) desenvolve esse conceito a partir do século XIX, quando começam a ser observados novos costumes da sociedade europeia e surge a necessidade de criar novos meios de utilização arquitetônica nas cidades; evidenciando, portanto, a divisão entre espaço público e espaço privado. No espaço público estão os espaços culturais e de lazer; no espaço privado estão os espaços relacionados à economia, ao governo e, consequentemente, ao poder. Diferentes espaços foram gerados e reorganizados para abrigar funções específicas, produzindo diferenças entre o “lugar” e o “não lugar”.

Por ser um espaço heterotópico, o Vale do Anhangabaú nos conta episódios de diferentes períodos, que podem ser lembranças transmitidas de geração em geração, ou podem ser notadas pelos seus vestígios físicos, como algumas construções do entorno, desenhos e fotografias. Ele atende a manifestações temporárias, como shows e feiras, e também comporta diferentes atividades no mesmo lugar: comércio, lazer, passagem, entre tantas outras propostas. Suas funções variam de acordo com cada cultura ali vivenciadas.

A extensão complexa do Vale contempla culturas e ambientes distintos, criando diversas relações homem-espaço em um mesmo tempo. Trata-se de um espaço com vários cenários justapostos para diferentes intenções. O próprio entorno compõe “subespaços”: os edifícios novos e/ou históricos, a paisagem, as ruas e avenidas abrigam a pluralidade de signos e cultural da cidade. 

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Imagem digital do novo projeto do Vale do Anhangabaú. Fonte: Prefeitura de São Paulo, 2015.

Tratando ainda da contemporaneidade, a hibridização de identidades torna-se imprevisível. As características de cada povo sofrem influências diretas que alteram drasticamente nossas percepções do espaço e da nossa vivência. Um dos elementos importantes para esse processo foi o surgimento e a apropriação de novas tecnologias de comunicação, que introduziram mudanças no ecossistema de mídia e, em muitos casos, transformaram radicalmente as regras comunicativas sociais. 

O desenvolvimento da rede tecnológica, os sistemas de digitalização textual e o estabelecimento de novos protocolos de troca de informações criam um ambiente que permite o surgimento de formas diferentes de câmbio, transformando o ecossistema de mídia em todos os seus aspectos e propondo novos modelos de fragmentação e redistribuição do público.

Além disso, surge uma nova urbe pós-pandemia, que é composta pela convergência dos meios de comunicação, pela cultura participativa e pela inteligência coletiva. A convergência dos meios de comunicação originou a abundância de conteúdo e múltiplas plataformas de mídias, com cooperação de diversos mercados e comportamento migratório dos públicos. Essa aproximação é o que chamamos de transculturalidade.

Desse modo, o Vale do Anhangabaú, como um portador de signos, representa um capital simbólico para a cidade, assim como São Paulo para o Brasil e o mundo. A complexidade atual faz pressão por ajustes rápidos e constantes que mantêm, em partes, relações identitárias e sociais, resistindo ao tempo e às mudanças culturais. A interpretação dos signos históricos, no contexto digital e comunicacional, exige uma reflexão da sociedade veloz, múltipla e profunda para decifrá-los.

“Vale-produto”: consumo do espaço

Transpassando moda, arquitetura e urbanismo, podemos entendê-las como expressões artísticas e culturais que compõem a paisagem com diferentes escalas, durabilidades, materialidades e técnicas, compartilhando a relação entre indivíduo e meio. Essas áreas são compostas por sistemas de signos que suprem as necessidades básicas do homem de abrigar e vestir, e relatam o espírito de cada tempo. O processo de criação dos três tipos de projetos segue os mesmos princípios: a composição da forma e a proporção do corpo – considerando a relação exterior e interior. 

Considerando que essas áreas são práticas abrangentes que constroem e modificam espaços, abordarei o termo design espacial. Esse conceito apresenta-se como um método integral que reúne conceitos e exercícios do ato de projetar quaisquer artefatos – combinando criativa e tecnicamente a cultura e a arte, com responsabilidade social e econômica. Pretende conceber o desenho a partir da localização e do usuário, em um fluxo de dentro para fora, em movimento constante de mudança e expansão.

O designer espacial, portanto, interliga corpo, vestuário e espaço para criar novas formas e paisagens construídas; relacionando pessoas e construções, modificando e sendo modificado por hábitos e necessidades de um determinado período. Conforme as ideias de design de Latour (2004), é possível dizer que os aparatos da moda, da arquitetura ou do urbano, bem como seus produtos e procedimentos comunicacionais, têm como objetivo principal a convergência em cada ator social sendo essas intuitivamente um verdadeiro ambiente mediador.

As práticas sociais e políticas, a partir disso, criam demandas sobre a interatividade com o espaço, que tende a gerar novos imaginários e comportamentos, deformando imagem e objeto. Vai além da superficialidade com que a estética muitas vezes é tratada. Sendo assim, a cidade comunica as tendências de um comportamento ou conduta social e o arquiteto a compõe com impressões do futuro, que terão impactos profundos e imponderáveis. 

Essas produções têm outro aspecto semelhante em alguns momentos da História: cedem aos estilismos considerados rentáveis pelo mercado, formando moda, arquitetura e urbanismo genéricos, dificultando a identificação das peculiaridades de uma sociedade. Projetam um modelo aceito pela elite, fonte do seu prestígio, de modo eufórico, em que os diversos consumidores o transformam em vários signos, conduzindo a um programa de conduta e/ou a um espetáculo luxuoso.

Em contraste, outra vertente busca composições ideológicas produzidas como estimuladores de atividade econômica, em que se implementam e não devem ser desvalorizadas com imediatismo. Em determinado contexto, o que pode nos causar certa estranheza e críticas severas, com o passar do tempo, é assimilado pela comunidade e o que era apenas uma tendência torna-se marco de uma cultura. A globalização acelerou as necessidades de adequação da sociedade ao espaço, este deve responder às mudanças por meio da leitura do comportamento, da narrativa e da trajetória espacial, atribuindo instrumentos que permitam a revisão do programa. 

Esse processo surgiu a partir do desenvolvimento dos meios de comunicação e informação que romperam com a ideia de território no mundo, o que teve dois grandes impactos: no conhecimento e na cidade. Consequentemente, o mercado passou a não depender da proximidade geográfica, abrindo-se para o mundo, e os ganhos aumentam significativamente. Então, os ricos se concentraram nas cidades que proporcionam, ironicamente, proximidade com atrativos urbanos altamente lucrativos, ou seja, geram os “ganhos da aglomeração”. São as metrópoles que fascinam essa elite, que investe mais em cultura como forma de vivência e interação social. 

Grandes cidades como Berlim, Nova Iorque, Tóquio e São Paulo tornaram-se metrópoles ou “cidades globais”, pois a apropriação e o uso de tecnologias de informação e de comunicação massivas diluíram as fronteiras territoriais e as identidades locais, tornando-as polos que atraíram diversas pessoas de diferentes partes do mundo. O indivíduo e o grupo sobrepõem-se a territórios e culturas, tornando-se imigrantes qualificados, vivendo em dimensões, escalas e representações espaciais diferentes, viabilizadas pela conectividade eficiente dos recursos comunicacionais.

Ao mesmo tempo, as políticas urbanas buscaram destacar-se pela cultura para serem reconhecidas como referências culturais e não apenas financeiras. As grandes e médias cidades passaram a aspirar o selo de “Cidade Criativa” com a construção de espaços públicos ou equipamentos destinados à cultura, resultando em marcos arquitetônicos, que renovam a imagem da cidade e geram valores sociais e culturais. 

Isso alimenta o ciclo comunicação-cultura-poder, que pode pertencer às organizações do terceiro setor e denominado “economia da experiência”, “indústria criativa”, “interculturalidade”, “turismo cultural”, entre outros. Uma das estratégias para impulsionar a experiência nesses espaços foi a organização de grandes eventos internacionais, como desfiles de grandes marcas, concursos de arquitetura e urbanismo, o Carnaval, as Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol, que promovem atrações para a cidade, visando notoriedade e midiatização. 

A aplicação de tais políticas, contudo, não garante o desenvolvimento equilibrado e democrático, pois elas transformaram-se em ferramentas de mercado que geram gentrificação, elitização e polarização. Na escala social, outro fator que contribuiu e estimulou tais estratégias políticas foram as novas ferramentas digitais individuais; redes, aplicativos, plataformas e aparatos de comunicação que se tornaram requisitos para a participação social. Elas passaram a incluir as relações de poder e os desequilíbrios contemporâneos de classe, como de gênero e de etnia, nos sistemas tecnológicos.

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Imagem do documentário O futuro do Vale do Anhangabaú. Fonte: TV FOLHA, 2015

Formou-se a ideia de que o acesso à cultura pode incentivar o encontro em espaços públicos e deve ser parte constitutiva da cidadania; porém essa perspectiva é compatível principalmente com os estilos de vida e com as expectativas das classes médias urbanas mais escolarizadas, que veem na cultura, no lazer e na estetização dos ambientes importantes condições de interação socioespacial. 

A questão da criatividade no urbanismo contemporâneo é explicada como a competição entre metrópoles e o anseio da sociedade por novidades constantes. A valorização do setor cultural adquiriu um papel essencial na vida das pessoas que têm potencial para acessá-lo. Espera-se que as cidades ofereçam uma cultura espetacular, que consiga atrair as mentes criativas e apreciadores da inovação por meio de grandes eventos e de projetos arquitetônicos excepcionais. A construção desses lugares, baseada na cultura, passa a ser destinada a uma parte seleta da população, que formam um grupo de indivíduos que compõem uma classe privilegiada de grandes consumidores.

À medida que mais governos assumem reconstruir e revitalizar suas cidades com abordagens lideradas pelo consumo, pela arquitetura e por experiências baseadas no lugar, seus esforços levam à homogeneização da paisagem urbana e à banalização das vivências urbanas, minando a própria natureza da criatividade. Políticos, planejadores e especialistas em marketing estão cada vez mais focados no desenvolvimento de experiências para favorecer o consumo de produtos, serviços ou localização. Consequentemente, tais aspectos também auxiliam no período de eleição, pois atraem um amplo grupo de eleitores informados, que podem formar ou influenciar opiniões.

Esse consumidor não tem necessidade de adquirir bem ou serviço básico, ele tem prazer em pagar para desfrutar de lugares extraordinários; assim, as vivências agregam valor aos produtos e fornecem um mercado estratégico. A “economia da experiência” pode ser entendida de modo que experiências, criatividade e cultura criam valor monetário, ou um plano político para gerar crescimento econômico e retorno, por meio do financiamento de projetos e da apropriação da relação entre as indústrias culturais.

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Virada Cultural. Fonte: Prefeitura de São Paulo, 2013

Portanto, a dinâmica dos sistemas de signos da moda, arquitetura e urbanismo abriga uma economia profunda, que é sustentada pela experiência, produtora e guardiã dos sentidos. Ao mesmo tempo que é uma expressão social, é uma relação de poder, um paradoxo semiológico, contraditório e complementar, provido de significação e racionalização. O ideário de ascensão de uma metrópole eleva a imaginação social e coletiva, criando linguagens e produzindo novas utopias.

Esses grandes eventos e projetos no mundo polarizam o público e concentram a economia nas cidades que podem promovê-los; suprem a necessidade gerando consumo. A revisão do Plano Diretor de 2014 em São Paulo teve como um dos objetivos a requalificação da área central da cidade. Nesse sentido, vê-se a preocupação com questões constantemente discutidas nas cidades, como: ampliação de moradias no centro, melhoria e conservação dos espaços públicos, fomento da vida noturna, melhorias para as atividades empresariais e comerciais, enfatizando a escala humana e a convivência social.

Nesse caso, especialmente a arquitetura e o urbanismo não deveriam ser tratados como itens supérfluos por um governo, e sim como agentes efetivos de colaboração para áreas fundamentais da cidade – como segurança e mobilidade. O Vale do Anhangabaú estava incluso no último plano diretor, com a função de colaborar em boa parte dos desafios apresentados e também renovar a imagem da cidade no contexto mundial. Em busca do êxito, ambos os projetos escolhidos (1981 e 2015) traziam a promessa de superar antigos problemas com uma roupagem atualizada da nobreza, definida pela necessidade e pelo desejo de consumo para cada tempo.

“Trans-Vale”: caleidoscópio do espaço

Se o homem é um ser espacial, e essa é a única condição para existir o espaço, que é criado a partir desse sistema de relações, desejo que a experiência do encontro corpo-espaço nos desperte uma profunda percepção. A espécie humana não pode absorver totalmente a realidade do passado e do futuro, o que poderia ser e o que será, mas concentra-se no que é, no presente. Os espaços construídos ou alterados são paisagens compostas pela combinação precisa de números e pela cultura, que manifestam e reproduzem uma ideia de existência humana. 

Aplico o termo transurbanismo de Canevacci (2007) pela necessidade de utilizar uma palavra que permitisse extrapolar técnica e conceitos do projeto da cidade, sem dispensá-los, mas ampliando a prática e a essência. O prefixo “trans” tem origem no latim e significa “posição além”, “através de”, “ir além”. Como Foucault (2002) sugere, as palavras são signos que existem para que nós as decifremos. O autor explica que, em um primeiro momento, a palavra refletia a essência das coisas, de forma certa e transparente, literal. Ao longo do tempo, a linguagem não se assemelha de imediato às coisas que denomina, mas compõe seu significado e a revela de outra forma. 

Essa palavra permite adequar conceitos estabelecidos em outros períodos para investigar as tendências geradas pelo desenvolvimento fluido da comunicação. Corpo, espaço e paisagem se mesclam, se multiplicam e se transformam em encontros híbridos que permitem sentir a arquitetura de forma interativa e com identidade transitiva. São consequência e causa da descentralização e mistura de estilos, tornando-se determinantes quando implantados na cidade e sociedade.

Transurbanismo é modificar intensamente a prática de ver a cidade, explorando a capacidade sensorial, que cria novos horizontes e ritmos. Os espaços ativos convidam o sujeito a sonhar, oportunizam privilegiadas relações entre corpo-espaço-paisagem.

Nesse sentido, quero provocar uma observação transurbana para construir universos que não podem ser esgotados em uma única ideia, ou em apenas um jeito de fazer e pensar a cidade. Trazendo a compreensão de parte do processo constitutivo do espaço Vale do Anhangabaú, busco estimular a nossa imaginação e atingir o imaginário no amanhã, indo além da imagem do Vale ontem e hoje.

Julgar o valor do presente, portanto, é complexo e arriscado. Se falamos de tendências, o projeto vencedor do concurso de 1981 e o de reurbanização e requalificação de 2015 têm o mesmo impacto na percepção. Tiveram alto investimento, propunham atenção à escala humana e receberam críticas de diversas naturezas. Quando falamos de uma comunidade, e não de um indivíduo, ou seja, um imaginário coletivo, tocamos em diversos repertórios que geram sensações diferentes. Tendências sempre são polêmicas, polarizam; mas aos poucos, são assimiladas e, por vezes, aceitas. A intuição do espaço, somada à experiência espacial, resultado de uma observação, tem como produto a “ideia do espaço”.

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Imagem digital do novo projeto do Vale do Anhangabaú. Fonte: Prefeitura de São Paulo, 2015

Lipovetsky e Sebastien (2004) afirmam que o contexto capitalista cria uma nova mentalidade artística apoiada em interrupções, irregularidades e na repulsão da tradição, enaltecidas e justificadas pela novidade e alteração. O novo, para esses autores, está baseado em Baudelaire, para quem a arte e a cultura são divididas entre o efêmero e o imutável. Entende-se, por exemplo, que a moda e a pintura, símbolos da cultura, são representações da estética atual (fator variável), fundamentadas em produtos do passado (fator definitivo). Em outras palavras, a expressão e leitura de um objeto variam de acordo com sua época, mas são fundamentados em obras anteriores e acrescento: ou instaladas em elementos históricos, que são permanentes.

Os dois projetos no Vale confirmam a importância de São Paulo em âmbitos nacional e internacional quando oferecem espaços públicos assinados por grandes arquitetos, que, na verdade, “vestem” aquele lugar com uma modelagem contemporânea em condição finita, mas implantados em local fixo. São apresentadas como novidades para a população e atraem as luzes da mídia, assim como dos visitantes do mundo inteiro. O olhar é magnetizado por uma noção de sensualidade no espaço. De alguma forma, esse movimento gera retorno financeiro e reconhecimento de uma metrópole importante, reforçando a relação de poder. São obras que tornam-se produto de consumo feitas para uma classe informada e com interesses políticos.

Os projetos não determinam diretamente um comportamento, eles influenciam, muito ou pouco, de maneira imprevisível. Enquanto construtores de espaços, entendemos que o objetivo da obra, ou do lugar, é aquele em que o indivíduo se encontra ambientado, no qual está integrado. O lugar não é toda e qualquer localidade, mas aquela que tem significância para um povo, que tem por essência o pertencimento.

Esse processo envolve a ideia de que o espaço é um termo mais abstrato, pois é indiferenciado. Transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor (por meio do corpo e de experiências) e lhe atribuímos valores, definições e significados. Acentuo a importância da transdisciplinaridade no estudo do lugar com ênfase na percepção, na experiência, no simbolismo da paisagem, cultura, estética, entre outros. Portanto, evidenciamos o lugar como um espaço humanizado, antes de ser um espaço de poder.

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Imagem digital do novo projeto do Vale do Anhangabaú. Fonte: Prefeitura de São Paulo, 2015

Gostaria que a imagem do Vale do Anhangabaú fosse deformada pela nossa imaginação e pudesse atingir nossos imaginários, individuais e livres de regras. Guiados pelas nossas faculdades sensitivas, antes de ser imagens ou palavras impositivas, translinguísticas. Quando falamos de um projeto de tal magnitude e complexidade, considerando toda a sua trajetória, a intenção é destacar seu valor cultural e seu impacto na comunidade, como um meio comum de todas as pessoas para se realizarem, resgatando valores que vão além da imagem.

Os estudos sobre esse espaço público traz alguns subsídios para a formação de ideias e opiniões, descrevendo os principais acontecimentos do local. Para assim, talvez, construirmos juntos um entendimento coletivo do impacto desse lugar, como um fenômeno simbólico que mescla e transcende disciplinas e tendências. O que é produzido por meio da imaginação cria semelhança na elaboração de narrativas, ativando a capacidade criadora.

Como um caleidoscópio urbanístico, desejamos ver beleza nas imagens da cidade, entendendo o belo como um atributo gerado a partir das nossas interpretações, no encontro entre corpo e objeto. Com a luz refletindo e espelhando, criam-se figuras mutáveis, dinâmicas, formadas segundo a frequência alcançada entre corpo e o olhar que as encontram. Na relação dentro e fora, vemos o que há no interior e o variamos com um leve movimento, que altera novamente a imagem, causando e testando outras e novas concepções e emoções. 

O gesto de girar o caleidoscópio correlaciona-se com nosso ato de experimentar enxergar a cidade de outros ângulos, transformando-a com outras intensidades, multiplicando as imagens que vemos. O cenário do Vale do Anhangabaú e a consciência podem construir um novo espaço sensível, de fluxo ativo, relacionando cidade e subjetividade; refletindo as errâncias urbanas, inventando e modificando nossos próprios horizontes, singulares e coletivos.

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Novo Vale do Anhangabaú: Foto: Fábio Tito/G1, 2020

Este ensaio, portanto, leitor, instiga às infinitas possibilidades de interpretações, percepções, sensações e repertórios particulares. Nesse contexto, a vivência do Vale do Anhangabaú pode oferecer uma experiência no limiar entre um mundo que percebemos (externo) e os pensamentos que nos permitimos (fantasias). A intenção desta obra não é, definitivamente, concluir uma discussão, mas sim abrir lacunas para outras reflexões das perspectivas do Vale. As ideias e projetos passam, porém o Vale do Anhangabaú sempre permanecerá!

Referências bibliográficas
Massimo Canevacci, Una stupita fatticità. Feticismi visuali tra corpi e metropili, Costa&Nolan, Milano, 2007.
Michel Foucault, As palavras e as coisas, Edições 70, Lisboa, 2002.
______________, Outros espaços, em: Estética: literatura e pintura, música e cinema, 4ª ed., publicado na coleção Ditos & Escritos, Vol. III, por Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2015.
Bruno Latour, Politics of Nature: how to bring the sciences into democracy, Harvard University Press, Cambridge, 2004.
Gilles Lipovetsky e Charles Sebastién, Os tempos hipermodernos, Barcarolla, São Paulo, 2004.

Luíza Chiarelli de Almeida Barbosa é coautora do livro Vales Imaginários - Anhangabaú, Rio Books, Rio de Janeiro, 2020. Este texto compõe o capítulo 4 dessa mesma edição.

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Sobre este autor
Cita: Luíza Chiarelli de Almeida Barbosa. "Vale do Anhangabaú: multiplicidade do espaço no imaginário" 11 Dez 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/952948/vale-do-anhangabau-multiplicidade-do-espaco-no-imaginario> ISSN 0719-8906

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